A Confissão de Fé da Guanabara (1558)


Uma das mais antigas declarações da fé reformada foi escrita no Brasil, em meados do século XVI. Seus autores foram huguenotes (calvinistas franceses) enviados pelo próprio reformador João Calvino e pela Igreja Reformada de Genebra. O contexto desse notável documento foi a França Antártica, uma colônia criada na baía de Guanabara, em novembro de 1555, pelo militar Nicolas Durand de Villegaignon. Desejoso de colonos com valores mais sólidos, o comandante escreveu a Genebra pedindo o envio de evangélicos. Em resposta, a Igreja mandou um grupo de catorze pessoas, entre as quais dois pastores. O pequeno contingente desembarcou no Rio de Janeiro no dia 10 de março de 1557, ocasião em que foi realizado o primeiro culto protestante no Brasil e nas Américas.

 

No início, Villegaignon mostrou-se simpático aos recém-chegados. Todavia, logo começou a divergir dos reformados em relação a várias questões doutrinárias, em especial a singela celebração da Ceia do Senhor. No final de outubro, expulsou-os da pequena ilha para o continente. Impossibilitados de dar continuidade ao seu trabalho, no início de 1558, eles retornaram para a pátria. Todavia, diante das condições precárias da embarcação, cinco dos calvinistas decidiram voltar à terra firme. Acusados pelo comandante de serem traidores e espiões, eles foram presos e receberam um questionário sobre pontos teológicos, tendo poucas horas para respondê-lo. A resposta, escrita com tinta de pau-brasil pelo leigo Jean de Bourdel, ficou conhecida como Confissão de Fé da Guanabara ou Confissão Fluminense. Os outros signatários foram Pierre Bourdon e Matthieu Verneuil.

 

A confissão, escrita originalmente em latim, tem a forma de um credo, pois a maior parte dos parágrafos começa com a palavra “cremos”. Todavia, sua extensão e variedade de temas a coloca na categoria das confissões de fé, comuns na época da Reforma. A seção introdutória faz uma bela aplicação do texto de 1 Pedro 3.15. Os dezessete parágrafos de diferentes tamanhos tratam de seis questões principais: (a) 1-4: a doutrina da Trindade e, em especial, a pessoa de Cristo, com as suas naturezas divina e humana; (b) 5-9: a doutrina dos sacramentos, sendo a Ceia tratada em quatro artigos e o batismo em um; (c) 10: o livre arbítrio; (d) 11-12: a autoridade dos ministros para perdoar pecados e impor as mãos; (e) 13-15: divórcio, casamento dos religiosos e votos de castidade; (f) 16-17: intercessão dos santos e orações pelos mortos. O texto revela grande conhecimento da Bíblia, da teologia e da história da Igreja por parte do autor. São feitas referências ao Concílio de Nicéia e seu credo, bem como a vários Pais da Igreja: Agostinho, Tertuliano, Ambrósio e Cipriano. O documento tem um forte teor bíblico e reformado, destacando pontos como a centralidade da Escritura, a natureza simbólica dos sacramentos, a supremacia de Cristo, a importância da fé e a eleição, entre outros.

 

Sob alegação de heresia, na sexta-feira 9 de fevereiro de 1558, Villegaignon ordenou a execução de Bourdel, Bourdon e Verneuil. André Lafon foi poupado por vacilar nas suas convicções e ser o único alfaiate da colônia. Jacques Le Balleur, que havia conseguido fugir, mais tarde foi encarcerado na Bahia e executado no Rio de Janeiro. A história dos mártires calvinistas, escrita por Jean de Léry, e o texto da confissão foram incluídos no livro História dos Mártires (1564), de Jean Crespin. Em 1917, sob o título A Tragédia da Guanabara, o presbítero Domingos Ribeiro publicou essa narrativa em português, junto com a tradução da confissão de fé feita por Erasmo Braga em 1907, a pedido do Rev. Álvaro Reis. Essa obra está prestes a ser lançada em nova edição pela Editora Cultura Cristã.