A igreja reformada na Holanda


Durante boa parte do século XVI, os Países Baixos estiveram sob o poder dos soberanos hapsburgos, primeiro com o imperador alemão Carlos V e, a partir de 1555, com seu filho Filipe II, rei da Espanha. Os esforços em prol de reformas religiosas nessa região haviam surgido ainda nos séculos XIV e XV, com movimentos como os Irmãos da Vida Comum. Tais movimentos tinham uma teologia agostiniana e davam ênfase ao estudo da Bíblia, à vida devocional e à educação. A partir de 1520, surgiram as primeiras influências luteranas e anabatistas, que enfrentaram intensa repressão por parte das autoridades civis e eclesiásticas.

 

A fé reformada começou a se fazer sentir em 1523, através de contatos do estudioso holandês Hinne Rode com o reformador suíço Ulrico Zuínglio, e no final da década de 1550, já havia se implantado solidamente, principalmente nas regiões de língua francesa ao sul. Muitos neerlandeses foram influenciados por Calvino em Estrasburgo e Genebra e pelo reformador polonês Jan Laski em Emden e Londres. Em 1561, o belga Guido de Brès escreveu uma confissão de fé “para os fiéis que estão dispersos por todos os Países Baixos”. Esse documento, conhecido como Confissão Belga, foi adotado por um sínodo em Antuérpia, em 1566, vindo a se tornar o principal padrão doutrinário dos calvinistas holandeses. Seu autor foi martirizado em 1567.

 

O primeiro sínodo reformado holandês reuniu-se em Turcoing em 1563, mas os dois primeiros sínodos gerais reuniram-se em Wesel (1568) e Emden (1571), ambos fora das fronteiras do país. Este último foi especialmente importante, porque efetivamente uniu todas as congregações em uma Igreja Nacional, adotando três documentos doutrinários: a Confissão Belga, o Catecismo de Genebra (para as igrejas de idioma francês) e o Catecismo de Heidelberg (para as de língua holandesa). Seguindo o modelo francês, havia quatro níveis administrativos: consistórios locais, classes (presbitérios), sínodos regionais e sínodo nacional.

 

O nascimento da Igreja Reformada Holandesa coincidiu com um período de intensas lutas entre os neerlandeses e seu soberano, o rei católico espanhol Filipe II. Este havia declarado que preferia morrer cem mortes a ser um rei de hereges. Em 1566, os nacionalistas entraram em guerra contra os espanhóis. No ano seguinte, Filipe enviou o implacável Duque de Alba para destruir a heresia e sufocar a resistência. A ditadura que se seguiu (1567-1573) custou milhares de vidas, mas não conseguiu vencer a rebelião. Sob a liderança de Guilherme de Orange, que abraçou o calvinismo em 1573, o Holanda declarou a sua independência em 26 de julho de 1581. Guilherme foi assassinado por um fanático em 1584, sendo sucedido por seu filho Maurício, que consolidou a independência da nova República.

 

Em conseqüência das lutas político-religiosas, os Países Baixos se subdividiram em três nações: Bélgica e Luxemburgo (católicas) e Holanda (majoritariamente protestante). Sob o influxo da fé reformada e da recém-conquistada autonomia política, a Holanda se tornou rapidamente uma das nações mais prósperas da Europa, criando um império comercial que se estendeu por todos os continentes. Tornou-se também uma das regiões da Europa marcadas por maior tolerância religiosa, atraindo dissidentes e refugiados de diversos países.

 

PARTE 2

 

No início do século XVII, a Igreja Reformada Holandesa foi abalada por grande controvérsia teológica desencadeada pelos ensinos de Tiago Armínio (1560-1609), um pastor e professor da Universidade de Leyden. Afastando-se da posição calvinista clássica acerca da eleição, ele afirmou a cooperação da vontade humana na salvação. Após a sua morte, seus simpatizantes elaboraram um documento básico conhecido como Remonstrância (1610), contendo uma síntese dos “cinco pontos do arminianismo”. Os defensores da posição ortodoxa eram os gomaristas, partidários de Francisco Gomarus, outro professor em Leyden. Os conflitos entre os dois partidos foram tão graves a ponto de temer-se uma guerra civil.

 

Nesse contexto, o Parlamento convocou o Sínodo de Dort, que se reuniu de novembro de 1618 a maio de 1619 e marcou o triunfo da posição calvinista. Além dos holandeses, esse sínodo contou com a participação de teólogos reformados ingleses e alemães, tendo aprovado os célebres “Cinco Pontos do Calvinismo”, que foram sintetizados nas seguintes expressões: a) Depravação total; b) Eleição incondicional; c) Expiação limitada; d) Graça irresistível ou vocação eficaz; e) Perseverança dos santos. Em inglês, as iniciais dessas expressões formam a palavra “tulip”; daí serem os cinco pontos conhecidos como a “Tulipa do Calvinismo”. Apesar de derrotados, os arminianos eventualmente tiveram permissão para organizar a sua própria Igreja. Sua teologia haveria de exercer forte influência em outros países, como a Inglaterra de João Wesley.

 

Ao longo do século XVII, a Holanda experimentou um grande florescimento da teologia e da filosofia. Grandes universidades como as de Leyden e Utrecht se tornaram centros de erudição calvinista, atraindo estudantes de toda a Europa. Dois teólogos destacados desse período foram Johannes Cocceius (†1669) e Gisbertus Voetius (†1676). Outra área de vitalidade foi a arte, na qual se notabilizou o grande pintor Rembrandt van Rijn (†1669). A jovem República também prosperou economicamente e estendeu a sua influência política e comercial a várias partes do mundo. Entre as regiões colonizadas pelos neerlandeses, naquele século, estiveram o Nordeste do Brasil (1630-1654) e a Indonésia. Nesta última, viveu João Ferreira de Almeida (1628-1691), que fez a primeira tradução da Bíblia completa para o português. Almeida foi pastor de uma grande congregação de língua portuguesa naquela colônia, filiada à Igreja Reformada Holandesa.

 

Nos séculos seguintes, o movimento reformado holandês sofreu o impacto de diversos fatores nas áreas política (guerras, relações internacionais), intelectual (escolasticismo, Iluminismo) e religiosa (pietismo, liberalismo, avivamentos). No século XIX, ocorreram dois cismas que resultaram no surgimento de novas denominações. Uma figura importante foi o pastor, teólogo e político Abraham Kuyper (1837-1920), líder da nova Igreja Reformada (Gereformeerde Kerk), fundador da Universidade Livre de Amsterdã e primeiro-ministro da Holanda de 1901 a 1905. Apesar de muitas vicissitudes, os reformados holandeses continuam dando importantes contribuições ao seu país e a outras nações ao redor do mundo.