O Pensamento Escatológico de Calvino

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CPAJ


Parece evidente para qualquer leitor dos textos da Reforma que a escatologia não foi um dos assuntos mais importantes para os reformadores. O simples fato de Calvino não ter escrito um comentário sobre Apocalipse,1 ou sequer dedicado tempo para pregar sistematicamente o livro, parece uma evidência irrefutável que confirma essa impressão.2

 

No entanto, essa percepção pode estar errada, ao menos parcialmente. É verdade que aquilo que hoje em dia se costuma chamar de escatologia, e que diz respeito principalmente às discussões envolvendo o milênio, o arrebatamento, a batalha do Armagedom e temas semelhantes, passou bem distante da pena do reformador de Genebra e dos outros reformadores. Porém, o primeiro questionamento a ser feito é se esses temas resumem de fato o que significa escatologia à luz das Escrituras, ou seja, se escatologia deve ser entendida apenas como eventos pontuais que antecipam ou sucedem a segunda vinda de Jesus, ou se, como aponta Moltmann “o cristianismo é total e visceralmente escatologia, e não só a modo de apêndice; ele é perspectiva e tendência para frente, e por isto mesmo, renovação e transformação do presente”.3 Mesmo não partilhando da agenda escatológica de Moltmann, é preciso reconhecer que a sua definição é preferível à anterior, isso porque, como já afirmei em outro lugar, “não apenas o cristianismo que brota do Novo Testamento é escatológico, como toda a mensagem da Bíblia do Antigo e do Novo Testamento é escatológica. Desde que a primeira palavra da Bíblia, o ‘no princípio’ foi declarada, o fim já foi evocado, porque na própria ideia de ‘princípio’ há a ideia de ‘fim’”,4 uma vez que “existe uma profunda e inseparável conexão entre criação e consumação, o começo e o fim”.5

 

As principais doutrinas que estiveram no centro das discussões no tempo da Reforma evidentemente foram aquelas de caráter soteriológico, ou seja, que tratavam de definir com precisão como funciona o sistema bíblico de salvação, em contrapartida a todas as invenções romanas. Mas isso não significa que os reformadores, e especialmente Calvino, não pensaram ou escreveram sobre escatologia, até porque soteriologia e escatologia são loci bastante interligados na enciclopédia teológica. Basta lembrar que salvação é “de” alguma coisa “para” alguma coisa. No caso, é salvação dos nossos pecados e da condenação deles, para desfrutar das benesses divinas no futuro. A respeito disso, Barnes diz: “Os ensinos escatológicos dos reformadores protestantes foram para eles não menos teologicamente centrais que suas respostas ao problema da justificação; de fato essas duas dimensões de seus pensamentos são inseparáveis”.6 No caso de Calvino, mais do que em qualquer outro, isso é evidente.

 

O PAPA E O ANTICRISTO
 

Um aspecto bastante estudado sobre a escatologia ou o apocaliptismo da Reforma7 foi a tendência de interpretar o Apocalipse na ânsia de identificar suas cenas e personagens com o próprio momento histórico vivido.8 Exceção deve ser feita a João Calvino (1509-1564), pois, como já foi dito, o Apocalipse foi um dos poucos livros que ele não comentou, nem se encontra nos seus escritos qualquer uso exagerado ou pictórico desse texto bíblico. Lutero (1483-1546) interpretou o livro no sentido linear-histórico, entendendo que a história o capacitava a decifrar o Apocalipse.9 É curiosa a interpretação dos três “ais” anunciados pela águia em Ap 8.13 por parte do grande reformador alemão. O primeiro “ai” era o herético Ário, o segundo, o ataque maometano à Igreja, o terceiro, o império papal.10 Inicialmente Lutero teve dificuldade em aceitar a própria canonicidade do livro, pois fazia pouca referência a Cristo, segundo o reformador alemão.

 

Entretanto, como diz Backus, parafraseando Lutero: “O Apocalipse era certamente obscuro e não ensinava Cristo. Poderia, entretanto, ensinar sobre o Anticristo, que poderia ser e certamente tinha sido identificado com o papa em muitos dos comentários radicais dos séculos 14 e 15”.11 Posteriormente, segundo McGinn, os luteranos encontraram um local para o próprio Lutero no Apocalipse, identificando-o com o anjo que transporta o evangelho eterno em 14.6-7.12 Os católicos, por sua vez, apresentaram outra interpretação. Roberto Belarmino (1542-1621) identificou o anjo do abismo, a figura demoníaca de Apocalipse 9.11, com Lutero e o luteranismo.13

 

Como já foi dito, Calvino não se manifestou sobre o Apocalipse, mas seus discípulos se pronunciaram. A Bíblia de Genebra, uma Bíblia comentada por calvinistas do século 16, atribuiu sem pudor a identidade de criaturas hostis do livro do Apocalipse a cargos e personagens católicos romanos. No comentário de Apocalipse 9.3, que descreve os gafanhotos demoníacos que saem do abismo, a nota diz: “Gafanhotos são falsos mestres e hereges mundanos, prelados, monges, frades, cardeais, patriarcas, arcebispos, bispos, doutores, bacharéis e mestres que abandonaram Cristo para manter a falsa doutrina.14

 

E mais à frente, quando aparece o chefe das criaturas, o anjo do abismo, o mesmo que os católicos disseram ser Lutero, a nota explicativa da Bíblia diz: “Esse Anticristo é o papa, rei dos hipócritas e embaixador de Satanás”15. De fato, o que havia em comum em praticamente todos os intérpretes da Reforma era a concepção de que o papa era o Anticristo.

 

Os puritanos calvinistas da Inglaterra cristalizaram na Confissão de Fé de Westminster (1648) essa interpretação clássica do papa como o Anticristo:

 

Não há outro Cabeça da Igreja senão o Senhor Jesus Cristo; em sentido algum pode ser o papa de Roma o cabeça dela, mas ele é aquele Anticristo, aquele homem do pecado e filho da perdição que se exalta na Igreja contra Cristo e contra tudo o que se chama Deus (XXV.6).

 

Apesar desse último texto parecer apontar para a figura de um papa específico como Anticristo, essa não parece ter sido a intenção dos autores da CFW. É um fato que eles estavam seguindo a interpretação de Calvino nesse ponto, e o próprio Calvino, embora defendesse abertamente que o papa era o Anticristo, no entanto via na figura do Anticristo não um rei, mas um reino. Comentando 2Tessalonicenses 2, e explicando aos seus leitores sobre a figura do Anticristo, Calvino relembra a crença antiga, que ele considera uma fábula de velhas, sobre Nero retornar dos mortos como o anticristo. Contra isso, ele declara: “Paulo, entretanto, não fala de um indivíduo, mas de um reino, que era para ser tomado como possessão de Satanás, para que ele possa se assentar como abominação no meio do templo de Deus – que nós vemos se cumprir no papado”.16

 

Não se trata, portanto, de um único indivíduo, mas “ele descreve aquele reino de abominação sob o nome de uma única pessoa, porque é um único reino, onde um sucede o outro”.17 Assim, o papa que naqueles dias se assentava em Roma podia ser considerado o Anticristo “ainda que ele fosse um menino de dez anos de idade”, como lembra Calvino. Porém, uma vez que ele roubava para si atributos exclusivos de Deus, não haveria, segundo o reformador, “grande dificuldade em reconhecer o Anticristo”.18 Portanto, nesse ponto Calvino não destoou inteiramente da interpretação medieval que via o cumprimento das promessas escatológicas em seus dias, mas, por outro lado, ele não viu isso como algo definitivo para seus dias, mas como algo que já vinha se cumprindo ao longo da história, e que ainda poderia se alongar muito.

 

O papa em si podia ser considerado como Anticristo somente no sentido em que o papado era o reino anticristão. Calvino conclui com as seguintes palavras: “Não é um indivíduo que é representado sob o termo Anticristo, mas um reino, que se estende através de muitas eras”.19

 

MEDITANDO NA VIDA FUTURA
 

Embora não tenha escrito um comentário sobre o Apocalipse, ou mesmo um tratado escatológico específico, Calvino entendia ser fundamental “meditar na vida futura”. Porém, não como um modo de alimentar a curiosidade ou a especulação das pessoas, e sim como um modo de reconhecer a bondade de Deus e a grandiosidade do evangelho.

 

A meditação da vida futura para Calvino é algo que se ancora na situação presente de tribulação. Nesse ponto, há um complexo pensamento desenvolvido pelo reformador que explica a própria existência da tribulação e dos sofrimentos da vida presente. Segundo Calvino, Deus permite a tribulação na vida presente para que aprendamos a desprezá-la, a fim de que sejamos despertados a considerar e valorizar a vida futura: “Com qualquer gênero de tribulação, porém, que sejamos premidos, é preciso levar sempre em conta este fim: que nos acostumemos ao menosprezo da presente vida e daí sejamos despertados à meditação da vida futura”.20 Essa é a primeira e mais importante declaração de Calvino sobre escatologia. Ou seja, nós só seremos despertados a meditar na vida futura se aprendermos a desprezar a vida presente. É a certeza da existência da vida futura que nos torna diferentes dos animais:

 

Pois nos envergonhamos de não superar em nada aos animais irracionais cuja condição em nada seria inferior à nossa, a não ser que nos restasse a esperança da eternidade após a morte. Com efeito, se examinares os planos, os esforços, os feitos de cada um, outra coisa aí não verás senão terra.21

 

A razão das tribulações é descrita em linguagem impressionante:

 

Portanto, para que não se prometam profunda e segura paz nesta vida, ele permite que sejam frequentemente inquietados e molestados ou por guerras, ou por tumultos, ou por assaltos, ou por outros malefícios. Para que não anelem com demasiada avidez às riquezas aleatórias e instáveis, ou se arrimem naquelas que possuem, ora pelo exílio, ora pela infertilidade do solo, ora pelo fogo, ora por outros modos, os reduzem à pobreza, ou pelo menos os mantém em condição modesta. Para que não se deliciem em demasiados afagos nos deleites conjugais, ou faz com que sejam atribulados pela perversidade das esposas, ou os humilha com uma prole má, ou os aflige com a perda desses membros da família. Pois se é mais indulgente com eles, em todas essas coisas, contudo, para que não se entumeçam de vanglória, nem borbulhem de confiança pessoal, lhes põe diante dos olhos, através de enfermidades e perigos, quão instáveis são e aleatórios todos e quaisquer bens que estão expostos à mortalidade.22

 

Ao estilo que soa o mais pessimista possível com relação a esta vida e suas alegrias, Calvino assevera:

 

Portanto, afinal, fruímos adequadamente proveito da disciplina da cruz quando aprendemos que esta vida, quando é estimada em si mesma, é inquieta, turbulenta, de inúmeras maneiras miserável, em nenhum aspecto absolutamente feliz; que todas as coisas que são contadas por bênçãos são incertas, inconstantes, fúteis e viciadas de muitos e mesclados males; e disso, ao mesmo tempo, concluímos que aqui nada se deve buscar ou esperar senão luta; que nossos olhos devem estar voltados para o céu, quando pensamos acerca da coroa que nos está reservada. Assim, pois, importa que nunca nosso ânimo se eleve seriamente à aspiração e à meditação da vida futura, a não ser que esteja antes imbuído de menosprezo da presente vida.23

 

Ao mesmo tempo, paradoxalmente, o desprezo da vida presente para Calvino não é, nem pode ser, uma ingratidão contra Deus. Aqui entendemos que para o reformador é a grandiosidade da vida futura que torna a presente desprezível:

 

Mas de fato os fiéis se acostumam ao desprezo da presente vida, de modo que  nem lhe gera ódio nem ingratidão para com Deus. Com efeito, esta vida, por mais que seja saturada de infinitas misérias, contudo, é merecidamente contada entre as bênçãos de Deus que não se deve desprezar.24

 

O ponto específico que Calvino está expondo fica claro quando ele declara: “Quando se chega a esta comparação, então de fato aquela pode não apenas ser tranquilamente negligenciada, mas diante desta pode ser totalmente desprezada e desdenhada”.25

 

A fim de que não reste dúvida de que ele não está falando de um desprezo ingrato da vida presente, mas em razão da necessidade da comparação que há com a vida futura, na qual a presente se torna desprezível, Calvino conclui:

 

Portanto, se a vida celestial for comparada à terrena, não há dúvida de que seja incontestavelmente não apenas desprezível, mas até mesmo digna de ser calcada aos pés. Por certo que nunca deve ser tida em ódio, senão até onde ela nos mantém sujeitos ao pecado; aliás, esse ódio nem deve voltar-se propriamente contra ela. Seja como for, convém, entretanto, de tal modo devemos deixar-nos afetar por ela, seja de enfado, seja de insatisfação, que, desejando-lhe o fim, também estejamos predispostos a permanecer nela ao arbítrio de Deus, em termos tais que de fato nosso enfado esteja longe de toda murmuração e impaciência.26

 

As implicações desse tipo de pensamento são efetivamente práticas. É nesse sentido que escatologia para o reformador passa longe do caminho da especulação e situa-se no contexto do viver a presente vida responsavelmente:

 

Mas, nenhum caminho é mais seguro e mais expedito do que aquele que nos resulta do menosprezo da presente vida e da meditação da imortalidade celeste. Ora, daqui seguem-se duas regras: primeira, que os que usam deste mundo sejam dispostos exatamente como se dele não usassem; os que contraem matrimônio, como se o não contraíssem; os que compram, como se não comprassem, como preceitua Paulo [1Co 7.29-31]. Segunda, que saibam suportar a penúria não menos serena e pacientemente, quando se desfruta de abundância moderada. Aquele que prescreve que deves usar deste mundo como se dele não usasses, aniquila não apenas a intemperança da gula na comida e na bebida, a moderada indulgência na mesa, na moradia, na indumentária, a ambição, a soberba, a arrogância, o enfado, como também todo cuidado e predisposição que te afaste ou impeça do pensamento da vida celeste e do zelo de nutrir a alma.27

 

A RESSURREIÇÃO, O MILÊNIO E O ESTADO INTERMEDIÁRIO
 

Embora não tenha reservado muito espaço em seus escritos para descrever sobre assuntos relativos ao futuro, Calvino não os deixou sem atenção. Porém, nesse ponto, do mesmo modo que em todos os outros da sua teologia, Calvino não está interessado em discussões inúteis.

 

O aspecto central da escatologia para Calvino é a ressurreição. Ela é a grande expectativa do crente. Calvino diz: “Por isso, eu disse que dos benefícios de Cristo nenhum fruto perceberam, senão aqueles que alçam a ânimo à ressurreição”.28 Essa é uma declaração poderosa. Na opinião do reformador, se a ressurreição não é o grande anseio de uma pessoa, isso significa que ela não “percebeu” nenhum fruto dos benefícios de Cristo. Portanto, a escatologia para o reformador concentra-se em estudar e compreender a ressurreição.

 

Calvino, de fato, parece ter certo anseio de brevidade em escrever sobre os eventos futuros, talvez porque não veja vantagens práticas em simplesmente satisfazer a curiosidade das pessoas, ou talvez por entender que o conhecimento e a certeza da ressurreição futura é a baliza para uma vida operante no presente, tendo em vista os terríveis distúrbios do tempo presente:

 

E para que nesta corrida seu ânimo não desfaleça, o mesmo Paulo evoca por companheiros a todas as criaturas [Rm 8.19]. Pois uma vez que se contemplam por toda parte ruínas disformes, ele declara que tudo quanto há no céu e na terra luta por sua renovação.29

 

A ressurreição do crente, entretanto, não pode ser vista dissociada da ressurreição de Cristo. Por esse motivo, o reformador gasta tanto tempo, logo após falar sobre a expectativa da ressurreição futura, reafirmando a certeza da ressurreição passada de Jesus, pois ela é a garantia e o penhor da nossa própria ressurreição.30 Portanto, o que parece preocupar mais a mente do reformador é que, sem a ressurreição, toda a estrutura do evangelho é demolida, uma vez que “cairia por terra sua autoridade, não apenas em uma parte, mas em seu todo, a que abarca não só a adoção, mas também a efetuação de nossa salvação”.31 Por isso, como já foi dito, não é possível dissociar escatologia de soteriologia na obra do reformador de Genebra.

 

O próprio Calvino reconhece a brevidade de sua descrição:

 

Estou a restringir, com parcimônia, coisas que não só poderiam ser tratadas mais extensamente, mas até merecem ser mais esplendidamente adornadas. E, no entanto, confio que em minhas poucas palavras os leitores piedosos encontrem bastante material que seja suficiente para que sua fé seja edificada. Portanto, Cristo ressuscitou para que nos tivesse como companheiros da vida futura.32

 

Mesmo assim, Calvino não foge a uma série de discussões a respeito da segunda vinda de Cristo, ou mesmo do estado intermediário. Quanto ao milênio, ele claramente se posiciona contra a interpretação literal:

 

Deixo de considerar o fato de que já no tempo de Paulo Satanás começou a pervertê-la; mas, pouco depois, seguiram-se os quiliastas, que limitaram o reinado de Cristo a mil anos. E, em verdade, a ficção desses é por demais pueril para que tenha necessidade de refutação ou seja ela digna. Tampouco Apocalipse lhes empresta suporte, do qual certamente tiraram pretexto para seu erro, quando no número milenário [Ap 20.4] não se trata da eterna bem-aventurança da Igreja, mas apenas de agitações várias que aguardavam a Igreja a militar na terra. Além disso, toda a Escritura proclama que jamais haverá fim para a bem-aventurança dos eleitos, nem para suplício dos réprobos [Mt 25.41, 46].33

 

A declaração, é verdade, não nos permite entender exatamente qual era a interpretação de Calvino sobre Apocalipse 20.4, mas é bem evidente que ele não aceitava a ideia de um reino literal de mil anos, pelo simples fato de que entendia que o reino de Cristo não podia ter fim. Calvino não esperava uma melhora gradual deste mundo, como alguns acreditam, antes entendia que perseguição e apostasia estão na rota deste mundo até o fim. Comentando 2Tessaloniscenses 2, que menciona a apostasia como condição sine qua non para a vinda de Cristo, Calvino diz: “Este discurso inteiramente corresponde com o que Cristo sustentou na presença de seus discípulos, quando eles perguntaram a respeito do fim do mundo. Pois ele exorta-os a se prepararem para enfrentar duros conflitos (Mt 24.6)”. Assim, Calvino conclui que Paulo “igualmente declara que os crentes precisam enfrentar combate por um longo período, antes de triunfar”.34 Calvino rejeita a interpretação de que a queda do Império Romano seria a causa dessa apostasia,35 e igualmente se recusa a aceitar que seja algo localizado: “Paulo, entretanto, emprega o termo apostasia para significar um terrível abandono de Deus, e que não parte de um ou poucos indivíduos, mas como algo que se espalha amplamente através de um grande número de pessoas”.36 Por outro lado, Calvino é extremamente otimista no que diz respeito ao avanço do evangelho em todo o mundo. Podemos dizer que ele via o progresso do evangelho, mas não o progresso do mundo.

 

Quanto ao estado intermediário e à situação das almas após a morte, Calvino relutantemente entra na discussão com um pouco mais de vigor, pois reage fortemente à ideia de que a alma não sobrevive independente do corpo após a morte:

 

De modo bem diferente, a Escritura compara o corpo a uma habitação da qual diz migrarmos quando morremos, porquanto nos avalia em função desse elemento, o qual nos distingue dos animais brutos. Assim Pedro, próximo à morte, diz haver chegado o tempo em que entrega seu tabernáculo [2Pe 1.14]. Paulo, ademais, falando acerca dos fiéis, depois de dizer que “temos nos céus um edifício, quando nos for demolida a morada terrestre” [2Co 5.1], acrescenta que “peregrinamos longe do Senhor enquanto permanecermos no corpo” [2Co 5.6]; mas, “desejamos antes deixar este corpo, para habitar com o Senhor” [2Co 5.8]. A não ser que as almas fossem sobreviventes aos corpos, o que estaria presente com Deus depois de haver separado do corpo? O Apóstolo, porém, remove toda dúvida quando ensina que fomos reunidos “aos espíritos dos justos” [Hb 12.23], palavras estas que nos fazem entender que somos associados aos santos patriarcas, os quais, ainda que mortos, cultivam conosco a mesma piedade, de modo que não podemos ser membros de Cristo, a não ser que nos unamos com eles. Também, a menos que, despojadas dos corpos, retivessem as almas sua essência e fossem capazes da bem-aventurada glória, Cristo não teria dito ao ladrão: “Hoje estarás comigo no Paraíso” [Lc 23.43]. Estribados em testemunhos tão claros, não duvidemos que, segundo o exemplo de Cristo [Lc 23.46], em morrendo, recomendamos nossas almas a Deus; ou, segundo o exemplo de Estêvão, as confia à guarda de Cristo [At 7.59] que, não sem motivo, é chamado o fiel Pastor e Bispo delas [1Pe 2.25].37

 

Calvino defende que as almas dos salvos estão com Deus após a morte, desfrutando das benesses preparadas para elas. No entanto, isso não significa que Calvino tenha uma posição inegociável a respeito do lugar onde as almas dos crentes descansam, nem acredita que seja possível definir isso com total precisão:

 

Entretanto, inquirir de seu estado intermediário, com demasia curiosidade, não é lícito, nem convém. Muitos se atormentam em demasia, disputando que lugar ocupam as almas nesse estado e se porventura já desfrutam ou não da glória celestial. Com efeito, é estulto e temerário indagar de causas desconhecidas mais profundamente do que Deus nos permita saber. A Escritura não avança além de dizer que Cristo está presente com elas e as recebe no Paraíso, para que desfrutem de consolação, e que as almas dos réprobos, porém, sofrem tormentos segundo seu merecimento. Que doutor ou mestre, agora, nos revelará o que Deus ocultou? Quanto ao lugar, a questão não é menos imprópria e fútil, quando sabemos que a alma não tem essa dimensão que tem o corpo. Que o bem-aventurado congresso dos santos espíritos é chamado o seio de Abraão [Lc 16.22], abundante penhor nos é de sermos, nesta peregrinação, acolhidos pelo pai comum dos fiéis, para que partilhe conosco o fruto de sua fé.38

 

Em outro lugar das Institutas ele voltaria a afirmar que definir o lugar exato das almas, ou seja, se estão no céu com Deus, ou em algum outro lugar também com Deus, não era um assunto central da fé cristã, nem devia ser causa de divisões:

 

Há outros pontos em que não concordam todas as igrejas e, contudo, não rompem a união da igreja. Assim, por exemplo, se uma igreja sustém que as almas são transportadas ao céu no momento de separar-se de seus corpos, e outra, sem se atrever a determinar o lugar, diz simplesmente que vivem em Deus, quebrariam estas igrejas entre si o amor e o vínculo da união, se esta diversidade de opinião não fosse por polêmica ou por obstinação?39

 

A melhor explicação que ele oferece do estado intermediário é a seguinte:

 

Enquanto isso, uma vez que a Escritura por toda parte nos ordena que dependamos da expectativa da vinda de Cristo e que prorroga a coroa de glória até esse momento, estejamos contentes com estes limites divinamente prescritos: uma vez desincumbidas de sua militância, as almas dos piedosos passam para o bem-aventurado descanso, onde, com feliz alegria, aguardam desfrutar da glória prometida, e assim todas as coisas sejam tidas em suspenso todas até que Cristo apareça como Redentor. Os réprobos, porém, não há dúvida de que têm a mesma sorte que é prescrita a Judas e aos diabos, a saber, são mantidos atados por cadeias, até que sejam arrastados ao suplício a que foram destinados [Jd 6].40

 

AS LIMITAÇÕES DA LINGUAGEM
 

O mais próximo que Calvino chega de algum tipo de especulação é no que tange a definir a natureza do corpo ressuscitado, porém, ainda assim, contidamente ele evita excessos, prendendo-se firmemente ao que Paulo ensinou em 1Coríntios 15:

 

Resta agora tratar brevemente do modo da ressurreição. Assim falo porque, chamando-o um mistério, Paulo nos exorta à sobriedade, para que freemos o excesso de mais livre e mais sutilmente especular. Em primeiro lugar, cumpre- -nos sustentar o que já dissemos: que, no que tange à substância, haveremos de ressuscitar na mesma carne que possuímos, mas a qualidade haverá de ser outra; assim como, quando a mesma carne de Cristo que foi oferecida como sacrifício ressurgiu, no entanto excedeu em outros dotes, como se fosse completamente outra, o que Paulo mostra com exemplos familiares [1Co 15.39]. Ora, assim como a substância da carne humana e da animal é a mesma [1Co 15.39], porém não a qualidade; e como a matéria de todas as estrelas é a mesma, porém diversa a luminosidade [1Co 15.41], assim, embora haveremos de ter a substância do corpo, ele ensina que haverá de sofrer mudança [1Co 15.51, 52], de modo que a condição lhe seja muito mais eminente. Portanto, para que sejamos ressuscitados, o corpo corruptível não perecerá, nem se desvanecerá, mas, deposta a corrupção, se revestirá da incorrupção [1Co 15.53, 54]. E como Deus tem a sua disposição todos os elementos, nenhuma dificuldade poderá impedir que ordene à terra, às águas e ao fogo que devolvam o que parecia haver consumido. Assim também testifica Isaías, ainda que em linguagem figurativa: “Eis que o Senhor sairá de seu lugar para que visite a iniqüidade da terra, e a terra porá a descoberto seu sangue, nem mais ocultará seus mortos” [Is 26.21].41

 

Portanto, continuidade e descontinuidade estarão presentes no mundo por vir em relação a este mundo.

 

Explicar como será a felicidade no mundo vindouro é algo que Calvino reconhece ser impossível. Nesse ponto, porém, provavelmente Calvino fez a mais importante e relevante contribuição para a compreensão do gênero apocalíptico e, por sua vez, para a própria escatologia, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento. Na citação acima, ele já mencionou que Isaías usou “linguagem figurada”. É um princípio bem conhecido de Calvino a questão da ideia da “acomodação” divina à linguagem e percepção humanas em todo o processo da revelação.42 E isso é ainda mais destacável ao tratar dos assuntos relativos ao mundo vindouro:

 

Mas então, uma vez, finalmente, cumprida a profecia quanto à morte ser tragada pela vitória [Is 25.8; Os 13.14; 1Co 15.54, 55], tenhamos sempre em mente a felicidade eterna que é propósito de nossa ressurreição, de cuja excelência, quanto as línguas humanas pudessem proclamar, seria apenas uma parte insignificante do que se merece. Ora, por mais que seja verdadeiramente o que ouvimos, de que o reino de Deus haverá de ser cheio de esplendor, de alegria, de felicidade, de glória, no entanto, aquelas coisas que se enumeram, permanecem mui remotas de nosso senso e como que envoltas em obscuridade, até que tiver chegado aquele dia em que ele mesmo haverá de exibir-nos sua glória para ser contemplada face a face [1Co 13.12]. Sabemos que somos filhos de Deus”, diz João, “mas, isso ainda não se fez manifesto. Quando, porém, formos semelhantes a ele, então o veremos tal qual ele é” [1Jo 3.2].  Por isso é que os profetas, não podendo exprimir em suas próprias palavras aquela bem-aventurança espiritual, como que simplesmente a delinearam sob a forma das coisas corpóreas.43

 

O reformador de Genebra, portanto, não busca interpretação literal nos textos que falam do mundo vindouro; antes, entende que a limitação da linguagem presente nos impede de descrever e de compreender o mundo vindouro, e isso serve de alerta contra qualquer tipo de especulação nociva:

 

E, quando tivermos avançado bastante nesta meditação, no entanto reconheceremos que, se a concepção de nossa mente for comparada com a sublimidade deste mistério, ainda nós ficaremos nas raízes mais inferiores. Portanto, devemos, neste aspecto, curvar-nos com mais sobriedade, para que, esquecidos de nossa própria limitação, pelo que com mais audácia subamos ao alto, o fulgor da glória celestial não nos trague. Sentimos também quão desmesurado é nosso desejo de saber mais do que é lícito, do quê jorram incessantemente questões não apenas frívolas, mas até mesmo nocivas. Chamo frívolas aquelas das quais não se pode tirar nenhum proveito. Mas, este segundo tipo é pior, porque os que se entregam a elas se enredilham em especulações perniciosas, razão por que as chamo nocivas.44

 

Ele descreve sua própria postura particular quanto a esse assunto com as seguintes palavras:

 

Quanto a mim respeita, não só pessoalmente me contenho de investigação supérflua de coisas inúteis, mas ainda sou de parecer que me devo acautelar para que não fomente a leviandade de outros, respondendo a questões como essas. Homens famintos de vão conhecimento indagam quão grande distância existe entre profetas e apóstolos; por outro lado, quão grande a distância entre apóstolos e mártires; de quantos graus diferirão as virgens das mulheres casadas, enfim, nenhum canto do céu deixam sem revolver em seu perscrutar.45

 

A conclusão, portanto, é límpida: “que este nos seja o caminho mais curto: nos contentemos com o espelho e o enigma, até que contemplemos face a face [1Co 13.12]”.46

 

CONCLUSÃO

 

Vemos, portanto, em Calvino uma escatologia sóbria, inteiramente a serviço da vida presente, distanciada de especulações, despreocupada em responder a todas as curiosidades dos homens, focada na ressurreição de Cristo e intimamente conectada com os conceitos soteriológicos desenvolvidos no período da Reforma. A linguagem e a concepção da mente humana nos impedem de entender plenamente o futuro e suas implicações, mas isso não significa que meditar sobre a vida futura seja algo inútil e infrutífero. Ao contrário, é uma tarefa sublime e necessária, desde que nos contentemos com o espelho e aprendamos a desprezar coerentemente a presente vida.


  Leandro Lima é doutor em Novo Testamento pela Universidade de Kampen, na Holanda; Doutor em Literatura e Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; Mestre em Teologia Histórica pelo CPAJ; professor de Novo Testamento no CPAJ; pastor auxiliar na Igreja Presbiteriana de Santo Amaro, São Paulo. Autor de diversos livros sobre temas teológicos e da ficção “Crônicas de Olam”, trilogia baseada em uma cosmovisão bíblica que está sendo produzida pela Tolk Publicações (selo da Editora Fiel).

- Notas de Referência 


1 No Novo Testamento, apenas 2 e 3 João, além de Apocalipse, não foram contemplados por Calvino.

2 Embora ninguém possa dizer com certeza qual foi o motivo que levou Calvino a não comentar o Apocalipse, o fato de que igualmente as cartas de 2 e 3 João não foram comentadas sugere que foi simplesmente por falta de tempo, tendo morrido um tanto cedo o grande reformador de Genebra, perto de completar 55 anos.

3 MOLTMANN, Jürgen. Teologia da esperança. São Paulo: Editora Teológica, 2003, p. 22.

4 LIMA, Leandro A. de. Razão da esperança. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 545.

5 VAN GRONINGEN, Gerard. Criação e consumação. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002, p. 29.

6 BARNES, Robin B. “Eschatology, Apocalypticism, and the Antichirst”. In: WHITFORD, David M. (Org.). T&T Clark Companion to Reformation Theology. Londres; Nova York: T&T Clark, 2012, p. 234.

7 Paul D. Hanson defende que há uma tríplice divisão dentro do campo apocalíptico que a terminologia precisa distinguir. Apocalipse seria o gênero literário, escatologia apocalíptica uma espécie de cosmovisão ou mentalidade e o apocaliptismo um movimento social. “Apocalypse, genre; Apocalypticism”. In: CRIM, Keith (Org.). The interpreter’s dictionary of the Bible. Nashville: Abingdon Press, 2000, p. 27-34.

8 O grande precursor desse tipo de interpretação foi, provavelmente, o abade franciscano calabrês Joaquim de Fiore (c. 1135-1202). Segundo Bernard McGinn, ele disse ter recebido a chave da interpretação através de uma inspiração divina. “Apocalipse”. In: ALTER, Robert; KERMODE, Frank (Orgs.). Guia literário da Bíblia. São Paulo: Unesp, 1997, p. 573. Joaquim escreveu seu comentário em 1195. Para Joaquim, o Apocalipse engloba os dois últimos status da história: a Era do Filho e a Era do Espírito. As primeiras seis partes de seu comentário referem-se à Era do Filho (quarenta e duas gerações com cerca de trinta anos) e a parte sete aborda a Era do Espírito. A parte oito, extremamente curta, trata dos eventos meta-históricos na Jerusalém celestial. BACKUS, Irena. Reformations Readings of the Apocalypse: Geneva, Zurich and Wittemberg. Nova York: Oxford University Press, 2000, p. xvii. A parte 1 (Ap 1-3) contém sete gerações e trata da luta dos apóstolos contra a sinagoga. A parte 2 (4.1-8.1) enfoca a luta dos mártires contra as perseguições pagãs. A parte 3 (8.2-11.18) abrange a luta dos doutores da Igreja contra os hereges até o estabelecimento de Constantino. A parte 4 (11.19-14.20) refere-se à luta das ordens monásticas contra o Islã. A parte 5 (15.1-16.17) representa o conflito entre a Igreja de Roma e o Sacro Império. A parte 6 (16.18-19.21) expõe a luta dos homens espirituais (representados por duas novas ordens religiosas), contra o dragão e contra as duas bestas, que representam, respectivamente, Saladino (contemporâneo de Joaquim) e o maximus Antichristus, uma pessoa que combina a heresia do Islã e todas as heresias ocidentais. BACKUS, Reformations Readings of the Apocalypse, p. xvii-xviii.

9 MCGINN, “Apocalipse”, Guia literário da Bíblia, p. 576.

10 Ibid.

11 BACKUS, Reformations Readings of the Apocalypse, p. 7.

12 MCGINN, “Apocalipse”, Guia literário da Bíblia, p. 577.

13 KOVACS, Judith; ROWLAND, Christopher. Revelation: the Apocalypse of Jesus Christ. Malden: Blackwell, 2004, p. 20.

14 “Locusts are false teachers, heretics, and worldly subtle Prelates, with Monks, Friars, Cardinals, Patriarchs, Archbishops, Bishops, Doctors, Bachelors and masters which forsake Christ to maintain false doctrine” (1602, 1989, Ap 9:3).

15 “Which is Antichrist the Pope, king of hypocrites and Satan’s ambassador” (1602, 1989, Ap 9:11). 6 CALVIN, John. Commentaries on the Epistles of Paul the Apostle to the Philippians, Colossians, and Thessalonians. Bellingham, WA: Logos Bible Software, 2010, p. 327.

17 Ibid.

18 Ibid., p. 329.

19 Ibid., p. 333.

20 CALVINO, João. Institutas da Religião Cristã. Edição Clássica. 4 vols. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, 3.9.1.

21 Ibid.

22 Ibid.

23 Ibid.

24 Institutas 3.9.3.

25 Institutas 3.9.4.

26 Ibid.

27 Institutas 3.10.4.

28 Institutas 3.25.2.

29 Institutas 3.25.2.

30 Institutas 3.25.3.

31 Ibid.

32 Ibid.

33 Institutas 3.25.5.

34 CALVIN, Commentaries on the Epistles of Paul the Apostle to the Philippians, Colossians, and Thessalonians, p. 325.

35 Ibid., p. 325-326.

36 Ibid., p. 326.

37 Institutas 3.25.6.

38 Ibid.

39 Institutas 4.1.12.

40 Institutas 3.25.6.

41 Institutas, 3.25.8.

42 Segundo Alister McGrath, Calvino desenvolveu, no século 16, uma teoria incrivelmente sofisticada sobre a natureza e a função da linguagem humana. A vida de João Calvino. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 154. Para Calvino, quando Deus fala, “ele se acomoda à nossa capacidade”. 1Coríntios. Trad. Valter Graciano Martins. São Bernardo do Campo, SP: Edições Parákletos, 1996, p. 82 (1Co 2.7). Nas Escrituras, segundo Calvino, Deus se revela por meio de palavras. Essas palavras humanas conseguem falar algo sobre Deus, mas são limitadas. Aqui está uma das grandes contribuições de Calvino para o pensamento cristão: o princípio da acomodação. Ou seja, a palavra divina adapta-se ou acomoda-se à capacidade humana, para suprir as necessidades da situação. Em outras palavras, Deus se retrata de uma forma que o homem tinha condições de compreender. LIMA, Leandro de. O futuro do calvinismo. São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 183.

43 Institutas, 3.25.10 (destaque nosso).

44 Ibid.

45 Institutas, 3.25.11.

46 Ibid.