Volume XIV

Número 2 – 2009

 

Este é o segundo número temático de Fides Reformata em seus 14 anos de história. O primeiro, voltado para a educação, foi publicado no segundo semestre de 2008. O presente número é inteiramente dedicado ao reformador João Calvino, no contexto das comemorações do 5º centenário do seu nascimento. Todos os autores dos artigos são professores residentes ou visitantes do Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper.

Em benefício dos leitores não familiarizados com o personagem, é oportuno lembrar alguns traços rápidos da biografia de Calvino (1509-1564). Sua vida pode ser dividida em diversas etapas, a primeira das quais foram os anos de infância em sua cidade natal, Noyon, no norte da França. No início da adolescência, ele começou um longo período de estudos superiores, primeiro em Paris, depois em Orléans e Bourges, e então novamente em Paris. Em 1533, graças a uma série de influências pessoais e literárias, ele abraçou a Reforma Protestante. No período seguinte, o jovem intelectual publicou a primeira edição de sua obra mais célebre, a Instituição da Religião Cristã (1536) e residiu por dois anos em Genebra. Após um intervalo de três anos em Estrasburgo, aos pés do colega Martin Butzer, ele passou o restante da vida em Genebra (1541-1564), onde realizou sua grande obra como pastor, reformador, teólogo e escritor.

Calvino é uma figura destacada por muitas razões. Ele foi o mais culto e articulado dentre os reformadores protestantes. Ninguém expos de maneira tão lúcida e sistemática a teologia da Reforma. Sua notável produção literária, composta de obras teológicas, comentários bíblicos, sermões, cartas e tratados, não teve igual no século 16. Ele foi o principal articulador internacional do movimento reformado, deixando milhões de herdeiros em todo o mundo. Sua teologia tem influenciado por séculos as igrejas presbiterianas, congregacionais, batistas, anglicanas e outras. Finalmente, seus conceitos educacionais, sociais, políticos e econômicos exerceram poderosa influência direta e indireta no desenvolvimento de importantes instituições e movimentos posteriores.

No primeiro dos artigos, Heber Carlos de Campos Júnior analisa as alegadas distorções que os herdeiros de Calvino teriam produzido na teologia do reformador. Especificamente, ele trata das seguintes “inovações”: a introdução do determinismo no corpo doutrinário calvinista, o subjetivismo puritano quanto à doutrina da segurança do crente, o caráter condicional do pacto da graça e a teologia árida e rígida do escolasticismo reformado. Além de refutar essas alegações, o autor questiona a ideia de que Calvino é o único ponto de referência da ortodoxia reformada. Ele defende os elementos de continuidade e desenvolvimento trazidos pelos reformados posteriores.

Daniel Santos Jr. investiga o interesse de Calvino pela literatura de sabedoria do Antigo Testamento, bem como a maneira pela qual o reformador a utiliza no argumento teológico das Institutas. Rompendo com o desinteresse da maior parte dos reformadores por essa literatura, Calvino recorre a versos isolados e a argumentos longos do livro de Provérbios no sentido de fundamentar questões teológicas cruciais como a divindade e a eternidade de Cristo. Usando como ilustração os jogos de lego e quebra-cabeça, o autor chama a atenção para o fenômeno da reutilização das Escrituras, tanto dentro do cânon (intertextualidade) quanto fora dele, como fez o reformador.

No terceiro artigo, Alderi Matos aborda uma questão de natureza biográfica – a personalidade de João Calvino. O autor argumenta que, apesar das críticas justas que se podem fazer ao reformador em relação a certos aspectos do seu temperamento e ações em Genebra, ele foi, em diversas áreas de sua vida, um homem sensível, afetuoso e equilibrado. Depois de fazer um breve apanhado de avaliações recentes da personalidade de Calvino, o autor discute tópicos como a formação familiar de Calvino, suas amizades, vida doméstica, espírito conciliador, espiritualidade e características pessoais. A conclusão aponta para o caráter paradoxal da personalidade do reformador, na qual permanecem em tensão traços positivos e negativos, destacando que os elementos construtivos ultrapassam em grande medida as falhas e incoerências do célebre personagem.

Fabiano Oliveira levanta a questão da epistemologia religiosa de João Calvino em seu opus magnum, as Institutas, abordando as concepções do reformador genebrino sobre o conhecimento de Deus e o autoconhecimento. Inicialmente, são feitas algumas considerações sobre o método literário seguido nessa obra, enfocando preocupações sistemáticas, doutrinárias e apologéticas. Em seguida, é abordado o enfoque tipicamente calviniano do duplo conhecimento: de Deus e de si mesmo. Partindo da corrupção da natureza humana e suas conseqüências sobre a razão e a vontade, e dos efeitos transformadores da graça sobre a mente e o coração, o autor conclui pela natureza redentiva e pessoal do verdadeiro conhecimento de Deus, o conhecimento da fé.

Em seu texto, Solano Portela analisa a questão da legitimidade do governo e da política na tradição reformada, em contraste com a postura anabatista de incompatibilidade entre a vida cristã e a função pública. Utilizando as contribuições de três pensadores centrais da tradição reformada – Calvino, Kuyper e Dooyeweerd – o autor argumenta que existe um consenso nessa tradição sobre o governo ou o estado como algo necessário para o bem-estar comum, fruto da graça comum de Deus e estabelecido em função da realidade do pecado na história humana. Sendo o estado uma instituição divina e sendo os governantes ministros de Deus, os cristãos não só devem obediência ao governo, mas têm o direito de se envolver em atividades políticas, tendo como fim maior a glória de Deus.

No sexto artigo, Mauro Meister relembra o legado de Calvino no âmbito crucial da interpretação das Escrituras. Ele aponta para os princípios hermenêuticos e o método exegético de Calvino, que produziram a mais equilibrada e frutífera abordagem da Escritura, o método gramático-histórico. Entre as ênfases do reformador estavam a busca do sentido literal, a exposição breve e lúcida e o uso das línguas originais, aliados a quatro pressupostos fundamentais: a autoridade da Bíblia, a necessidade de iluminação, o propósito da Escritura (edificação do povo de Deus) e a Escritura como sua própria intérprete. Em conclusão, o autor aponta alguns frutos duradouros da exegese bíblica calvinista, destacando suas aplicações homiléticas e pastorais.

O último texto é a Carta de Princípios da Universidade Presbiteriana Mackenzie referente ao ano de 2009. Seu autor, Augustus Nicodemus Lopes, chanceler da UPM, mostra a importância do pensamento de Calvino para a educação. Ele argumenta que as ideias do reformador nesse campo foram fruto de suas concepções teológicas e de sua cosmovisão abrangente, que coloca todas as dimensões da existência debaixo da soberania divina. A Academia de Genebra foi o embrião de um movimento educacional que levou os reformados a fazerem um grande investimento na criação de escolas e universidades ao redor do mundo. Longe de verem um conflito entre fé e ciência, os herdeiros de Calvino participaram em grande número das primeiras associações científicas europeias.

No final da revista são oferecidas ao leitor a resenha de uma valiosa coletânea de textos de Calvino, uma bibliografia comentada abrangendo obras de Calvino e sobre ele disponíveis em português e uma cronologia com os principais eventos de sua carreira. O objetivo deste número de Fides Reformata é honrar a memória desse admirável homem de Deus e lembrar algumas de suas contribuições mais significativas para a igreja e a sociedade contemporâneas, no desejo de que sirvam de inspiração para os cristãos no tempo presente.

Alderi S. Matos, Th.D.
Editor